quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Aono-Domon, o túnel da esperança

Autor anônimo


      No outono de 1723, há 257 anos, na época dos samurais em Tóquio (antiga Edo), ocorreu um fato terrível e sangrento na poderosa casa de um senhor feudal de uma província do norte do Japão. O sistema político dessa época era o feudalismo. Por isso, todos os senhores feudais precisavam obedecer a um sistema de vigilância, na forma de uma permanência temporária na capital, que durava um ano. Isto demonstrava a fidelidade e a obediência ao Shogum, o presidente da autocracia daquele tempo.


      Havia um senhor feudal, chamado Saburobei Nakagawa, que tinha um filho, Jitsunossuke, herdeiro de três anos de idade.


      O senhor feudal Saburobei já cumprira por várias vezes a obrigação de permanência temporária. Chegou a construir uma casa de luxo na rua Tawara de Assakusa, em Tóquio, como outros senhores feudais também o fizeram, obedecendo ao regulamento do governo central.


      Mas, enquanto ele morava na capital, precisava deixar sua família (esposa e filho), no seu castelo, numa província ao norte do Japão. E, ao contrário, quando ele voltava ao seu castelo, precisava deixar um administrador, vassalos, samurais e empregados, na capital, durante sua ausência.


      Sua casa na capital tinha bastante utilidade. Ela era um elo entre a capital e o interior e funcionava como um consulado, como no sistema atual.


      O senhor feudal, longe de sua mulher e filho, morava na casa da capital com uma amásia. Mas, quando ele voltava ao seu castelo, não podia levar sua amásia, e tinha que confiá-la ao seu administrador e vassalos até chegar o próximo período de permanência na capital.


      Ao voltar à capital depois de alguns anos, o senhor feudal Saburobei inteirou-se de que sua amásia, Oyumi, o havia traído com um de seus vassalos mais leais, chamado Ichikuro.


      Saburobei encheu-se de cólera quando recebeu a denúncia da traição. Mandou chamar o adúltero Ichikuro em uma sala separada, no fundo da casa, para decidir imediatamente a melhor forma de decidir esse caso.


Ichikuro prontamente apareceu e prostrou-se profunda e respeitosamente sobre o tatame, diante de seu senhor. O senhor feudal repreendeu severa e violentamente a Ichikuro, mas este não respondia nada, apenas mantinha o seu corpo em profunda e silenciosa inclinação, amparado em seus dois braços.


      Saburobei perdeu a paciência e, sem nenhum aviso, deu um golpe forte de espada visando a cabeça de Ichikuro. Nesse momento de perigo, Ichikuro escapou do ataque súbito de Saburobei defendendo-se com um candelabro, que foi a única coisa que encontrou ao alcance da sua mão. Mesmo assim, seu rosto esquerdo foi ferido pela ponta da espada.


      Ichikuro não tinha um pensamento relutante e desobediente, pelo contrário, ele estava sofrendo muito, atormentado pela consciência pesada. Mas apesar de todas as suas culpas, inconscientemente, ele sentia vontade de viver.


      Os ataques violentos e sucessivos da espada de Saburobei foram ficando cada vez mais freqüentes, forçando Ichikuro a tomar uma atitude defensiva. Essa luta continuou por mais algum tempo. Seu instinto de sobrevivência de homem ferido começou a dominar, enfraquecendo a discrição própria da relação entre um senhor e seu vassalo. Até que se rompeu esse relacionamento por causa da ameaça do senhor.


      Finalmente a luta chegou a um momento crítico e decisivo. Saburobei começou a atacar impetuosamente a fim de liquidar o traído odiado, tentando dar um último golpe mortal sobre Ichikuro, que se achava encurralado num canto da sala. O golpe foi violento.


      Essa luta entre senhor e vassalo terminou com um resultado acidental e fatal por causa da falha do último golpe de Saburobei. O último golpe do irritado Saburobei atingiu apenas um suporte de madeira da casa, e ele recebeu a força oponente e desesperada da espada curta de Ichikuro, que atingiu um ponto mortal do seu peito.


      Depois dessa luta violenta, ichikuro quase desmaiou devido a excitação excessiva e a exaustão extrema. Quando recuperou a consciência, começou a tremer de medo, de arrependimento, de espanto, reconhecendo a violência do grave crime que cometera ao assassinar o seu senhor. Era o crime mais grave que havia. Imediatamente, e sem hesitação, aprontou-se para praticar o Harakiri, pois apesar de Ter adulterado, nunca havia cometido qualquer maldade em sua vida.


      No momento em que ia realizar o Harakiri, de olhos fechados, escutou repentinamente, uma voz de mulher, vinda do outro quarto.


      A porta corrediça do corredor se abriu e a amásia Oyumi apareceu, exclamando? "Ichikuro! Eu também estava com medo de morrer! Se Saburobei o matasse, eu também seria morta pela espada dele. Eu estava escondida atrás do biombo, cheia de ansiedade e desespero. Mas tudo isso passou, Ichikuro! Foi você o vencedor. Você matou Saburobei! Levante-se! Coragem! Não podemos perder nem um minuto sequer para fugir daqui, porque felizmente ainda não apareceu ninguém. Vamos fugir logo!".


      Ichikuro levantou-se, impensadamente, como que hipnotizado. Oyumi levou Ichikuro ao outro quarto e silenciosa e rapidamente abriu todas as gavetas de todos os armários e cômodas do quarto, procurando dinheiro e coisas valiosas. Colocou tudo sobre um pano aberto no chão e rapidamente embrulhou-os em lenços de pano, fazendo três ou quatro pacotes. Assim, os dois adúlteros fugiram da casa do senhor feudal assassinado.


      Eles seguiram a sua viagem de fugitivos, furtiva e desvairadamente, afastando-se o mais possível da capital.


      O jovem samurai, Ichikuro, sofreu continuamente durante essa viagem involuntária, sendo torturado dia e noite por sua consciência. Mas Oyumi era uma mulher madura, corajosa e flexível. Ela influenciava Ichikuro constantemente.


      Dizia: "Nós somos criminosos e não temos condições de viver de forma normal. Não adianta sofrer tanto. A vida é curta, por isso precisamos aproveitar qualquer possibilidade e qualquer oportunidade para viver com a máxima satisfação. Você não é covarde, muito pelo contrário, você mostrou a sua coragem e a sua grande capacidade, matando aquele senhor feudal poderoso. Esqueçamos tudo!".


      Assim, decaindo dia a dia, continuaram a viagem. Quando chegaram num entroncamento, numa aldeia situada no centro de um lugar montanhoso, ao sul do Japão, viram que toda sua posse havia se esgotado e que não tinham nenhuma condição de ganhar dinheiro trabalhando honestamente. Resolveram então roubar. Eles aprenderam vários modos de roubar. Roubavam principalmente dos viajantes e passantes ricos que se aventuravam pelos caminhos das altas e arborizadas montanhas. Se as vítimas lhes entregassem todo o seu dinheiro e bens que traziam consigo, sem protestar, eles nada lhes faziam. Porém, quando elas protestavam muito, não querendo lhes entregar nada, eles usavam a violência e chegavam até a matá-las.


      Mataram mais de uma dezena de pessoas, entre comerciantes, passantes e viajantes, se deslocando sempre a outros lugares, a fim de escapar do controle do policiamento.


      Durante três anos eles fizeram isso. No início da primavera, depois de um inverno rigoroso, sempre aumentava a quantidade de viajantes. Eles ficavam mais animados, pois havia mais lucros.


      Certa vez numa tarde da primavera, eles encontraram um casal de jovens. Tinham acabado de se casar e estavam muito bem vestidos. Oyumi fez um sinal com os olhos para Ichikuro, que esperava uma confirmação sua para assaltar o casal. Ela consentiu, meneando a cabeça e, logo em seguida, ele correu sem fazer barulho pelo mato até chegar ao lugar planejado. Esperou alguns minutos atrás de uma árvore grande, até aparecer o casal, desejando que a entrega do dinheiro fosse feita sem relutância, para não acontecer o inevitável. Ele não queria roubar a vida cheia de felicidade e alegria dos jovens recém-casados que sonhavam com o futuro.


      Logo apareceram as duas figuras andando depressa e ritmadamente. Ichikuro fechou-lhes o caminho repentinamente, soltando palavras ameaçadoras. O jovem, que era um samurai, preparou-se numa postura firme para a luta com o inimigo que lhe aparecia, protegendo a mulher atrás de si.


      Ele não pretendia entregar nada e mostrou sua vontade de lutar, segurando firmemente sua espada levantada.


      Ichikuro gritou: "Não arrisquem suas vidas preciosas. Entreguem todo o seu dinheiro, obedientemente!". Mas não adiantou nada, porque no momento que Ichikuro acabou de gritar, o jovem samurai arremessou-se contra ele e foi lançado por terra com uma pancada da espada de Ichikuro.


      Nesse momento aconteceu outra tragédia. A jovem esposa, que presenciava a luta, suicidou-se com sua espada curta.

      Ichikuro sentiu um choque profundo, porque até aquele instante ele nunca havia tirado a vida de um jovem e agora, involuntariamente, ele era o causador do fim dessas duas vidas que ainda estavam na flor da idade.


      Pegou o dinheiro das vítimas e fugiu depressa do lugar trágico, correndo pelo meio do mato, até encontrar a companheira criminosa. Ela, porém, depois de verificar a quantia saqueada, zangou-se com ele, porque era uma quantia insatisfatória. "Por que você não pegou aquele vestido, o alfinete de cabelo, o anel e os outros adornos que a mulher trazia em seu corpo?" Ichikuro não respondeu nada. "Além de Ter assassinado os dois, por que você não pegou os seus objetos de valor? Eu não entendo o porquê. Você não é principiante nesse trabalho. O que você está pensando? Responda!"


      Ichikuro não respondeu nada. Continuou sentado, silenciosamente, com os seus olhos fechados e a cabeça baixa.


      "Agora volte e traga-me todos aqueles valores!" Ela gritou grosseira e irritadamente.


      Ichikuro nem levantou a cabeça.


      "Você é um burro, um covarde, um idiota! Se não tem interesse por essas coisas de valor, então eu vou buscá-las sozinha". Assim ela levantou-se e começou a correr pelo mato, mostrando e revelando, mesmo de costas, o seu pensamento energúmeno.


      A confusão que ocorria dentro da cabeça de Ichikuro estava pressionando-o violentamente. Parecia que sua cabeça ia estourar. Ele nunca havia sentido felicidade, alegria, ou tranqüilidade, desde o início daquela viagem como fugitivo, ao lado de sua mulher oyumi. Pelo contrário, só havia sofrimento e sua consciência criminosa o atormentava cada vez mais forte e insuportavelmente.


      O sofrimento acumulado de Ichikuro chegara ao limite extremo. Ele levantou-se rapidamente, tomando uma decisão definitiva e absoluta. Desceu correndo para o meio das montanhas, escolhendo a direção contrária a de Oyumi.


      Correu sem pensar, sem descansar, sem parar, continuamente, noite adentro. Enfim, depois de alguns dias de vagar fugitivo, ele recorreu a um templo budista, chamado Jogan-ji (que significa "o templo da autopurificação)". Apesar de Ichikuro confessar todo o seu passado, o sacerdote do templo permitiu-lhe ficar e ofereceu-lhe alojamento. E, quando Ichikuro mostrou vontade de se entregar ao julgamento pelos seus crimes, um monge do templo respondeu-lhe o seguinte? "Isso é uma solução muito fácil, mas não é aconselhável, porque é a negação de toda a sua vida. O único caminho ideal é o da purificação, a fim de se realizar o máximo de benefícios à humanidade".


      Assim, Ichikuro entregou toda a sua vida ao disciplinamento severo da purificação que era próprio desse templo. Correram alguns anos, dias e noites, nos quais Ichikuro, sem parar, treinava-se, absorvido na concentração, na purificação e na meditação, atravessando os vários meios rigorosos do auto-disciplinamento. Finalmente, ele ganhou um novo nome.


      Aquele Ichikuro morrera. Passou a chamar-se Ryokai, que significa "homem transformado em água" ou "água corrente".


      Assim, morreu Ichikuro, aquele criminoso, dando início a uma nova vida, a do monge Ryokai, e ao começo da realização de sua capacidade disciplinada. O monge Ryokai peregrinou por vários lugares do Japão, mostrando a sua capacidade na salvação das pessoas e na prática da beneficência, trabalhando e tratando dos pobres e dos doentes.

      Apesar de tudo isso, ele nunca conseguia sentir uma satisfação profunda e intensa ao contrário de seu crime e a toda tristeza de seu passado inesquecível.


      Quando o monge Ryokai, certo dia, chegou ao vale do rio Yamakuni de Kyushu, numa ilha muito grande, o outono já estava findando. Depois de almoçar em uma aldeia que se chamava Hida, continuou sua viagem por uma forte ladeira, que acompanhava a correnteza do rio Yamakuni. Era uma região de altas e escarpadas montanhas.

Esse caminho estava localizado ao sopé da montanha. Ele era facilmente transitável, porém em certo ponto ele se tornou tão íngreme e escarpado que obrigou as pessoas daquele lugar a construir uma ponte, de uma parte a outra da montanha. Ao lado dessa ponte havia um despenhadeiro profundo, onde se podia vislumbrar um enorme redemoinho formado pelas águas do rio Yamakuni, que furiosamente investia contra as rochas, ocasionando um espetáculo terrível e deslumbrante.


      Quando Ryokai caminhava por uma parte da ladeira daquela montanha escarpada, encontrou uma multidão tumultuosa de camponeses daquela região. Compreendeu que havia acontecido um acidente no despenhadeiro do rio Yamakuni.

      Haviam encontrado o cadáver de um homem que aparentava Ter sido muito forte quando vivo. Pela explicação de um velho camponês, esse tipo de acidente sempre acontecia naquele lugar perigoso, ocasionando 10 a 15 vítimas por ano.


      O monge Ryokai reconheceu a existência de perigos naquele passo difícil no meio do despenhadeiro, que impedia um caminho livre e seguro para o povo daquela região. A única solução que haviam dado era a colocação daquela ponte comprida, suspensa no meio do alcantil arriscado. Porém, em dias chuvosos e de ventanias, a passagem por aquela ponte era muito arriscada e perigosa.


      O monge Ryokai também passou por aquela ponte instável. Viu a garganta diabólica formada pelo redemoinho das águas do rio, debaixo da ponte, e também percebeu o alcantil desmoronável, que parecia a garra de um diabo monstruoso e ameaçador.


      No momento em que ele chegou ao fim daquela ponte instável, uma revelação divina lampejou dentro de sua cabeça, como um relâmpago. Foi como um choque elétrico. Com emoção profunda e imensurável ele captou a emissão de um mandamento divino nas profundezas de seu cérebro.


      Agora, finalmente, ele havia encontrado a razão de sua vida. A realização de uma obra inestimável e indispensável. Ele destruiria aquela ponte e em seu lugar cavaria um túnel, do mesmo comprimento, ligando uma extremidade à outra do despenhadeiro. Assim, ele salvaria todos os viajantes que passassem por aquele caminho perigoso.


      Imediatamente começou a preparação de sua obra, pedindo a colaboração de todo o pessoal da região. Porém, ninguém mostrou interesse em colaborar com o monge vagabundo, porque eles o julgavam maluco ou fraudador. Nomeio daquela alta montanha, a construção de um túnel com 390 metros de comprimento e o transporte de 30 mil metros cúbicos de terra pedregosa era completamente fora do comum. Apesar do povo estar desinteressado, ninguém conseguiu mudar a decisão de Ryokai.


      Ryokai adquiriu uma marreta e um escopro e começou, sem hesitação, o formidável trabalho, enfrentando o alcantil da montanha.


      Ao verem o seu propósito, os camponeses exclamavam: "Esse monge mendigo enlouqueceu!"


      Assim começou a formidável luta de Ryokai pela simultânea realização interior e exterior. Após meio ano de trabalho o resultado foi muito pequeno, miserável, realmente pequeno, mas o som do movimento da sua marreta contra as pedras continuava dia e noite, sem papar. Ele resolveu seu problema de alimentação esmolando restos de comida na aldeia. Depois de um ano de constantes pancadas de marreta na montanha, Ryokai conseguiu escavar 11 metros do túnel. Os aldeões sorriam diante desse trabalho insignificante. O motejo de aldeões continuou ainda por mais dois ou três anos seguido.


      Porém, após quatro outonos, o sentimento dessa gente em relação a Ryokai pouco a pouco começou a mudar. Eles começaram a ficar verdadeiramente espantados pela sua extraordinária perseverança e um sentimento de simpatia aflorou no coração daquela gente.


      A concentração de Ryokai nos movimentos constantes das pancadas de marreta dentro daquela gruta escura foi purificando cada vez mais profundamente o seu espírito, fazendo-o esquecer todos os acontecimentos do seu passado. Seus cabelos despenteados, o seu bigode e a sua barba cresceram excessivamente, chegando até os ombros e peito.


      Mesmo assim, as pessoas daquele lugar mostravam  um sentimento de pena e tristeza pelo esforço de Ryokai, dizendo: "Esse monge louco é um coitado; vai acabar a sua vida nesse trabalho completamente inútil e infrutífero".


      O tempo ia correndo. Passaram-se mais alguns anos e, quando a escavação na gruta chegou a 38 metros de profundidade, depois de nove anos, o povo da aldeia Hida sentiu a possibilidade da realização daquela fabulosa obra. Imaginando o resultado de todo o povo de Hida, comparando com o resultado do trabalho de nove anos do monge mendigo, os homens pensaram na possibilidade de um adiantamento da obra de Ryokai se reunissem todos os esforços dos homens das várias aldeias.


      Assim, reuniram-se todas as pessoas das aldeias, da zona do rio Yamakuni, para organizar rodízios de grupos de trabalho. Muita gente munida de instrumentos de trabalho começou a labutar no túnel. Agora, dentro da gruta de Ryokai não havia mais solidão, porque ele estava recebendo uma grande colaboração de todos os povos da região do rio, mesmo daqueles que haviam zombado e duvidado da realização de sua obra. Escutava-se longe o eco animado das marretas contra as pedras dentro da gruta.


      Porém, o apoio e a colaboração do povo enfraqueceu-se, transformando em dúvida e desespero, logo que encontraram uma rocha gigante, dura como o ferro, barrando-lhes a continuação do trabalho. Continuaram somente por mais um ano com muito pouco resultado, comparado com o plano inicial imaginado e esperançoso.


      "Nós fomos enganados por aquele monge maluco! A realização de um túnel dentro dessa montanha é completamente impossível, mesmo que multipliquemos os esforços". Eles abandonaram e esqueceram o trabalho do monge maluco.


      Por fim, o monge Ryokai, exausto e magro, ficou novamente sozinho dentro da gruta escura. Mas, apesar de todos os seus companheiros debandarem e abandonarem o trabalho, ele não se abalou nem um pouco e continuou o seu trabalho com devoção, ardentemente.


      A existência do monge Ryokai dentro da gruta foi gradualmente esquecida pelos aldeões. Quando alguém, temporariamente, se lembrava dele, ia até lá e espiava os movimentos de Ryokai naquela escuridão, duvidando do resultado do seu trabalho. Contudo, escutavam-se os ecos contínuos da marreta contra a pedra. Passaram-se mais alguns anos e Ryokai e as pessoas das aldeias se esqueceram mutuamente.


      A única realidade para Ryokai era aquela rocha colossal que ele enfrentava com toda a força de sua concentração.


      A sua figura não era mais de um homem deste mundo. Ele estava em pele e osso, os olhos fundos, a pele descorada. Esse frágil Ryokai era resultado daquele trabalho árduo e contínuo de mais de 13 anos. Às vezes ele permanecia sentado sobre as rochas duras e frias, dentro da gruta, por horas e horas. A sua única alegria e satisfação eram quando via despedaçar-se mais um fragmento da rocha, como resultado de cada pancada concentrada na marreta.


      E o tempo continuou passando...


      Muitos haviam se esquecido da existência de Ryokai. Alguns aldeões, entretanto, lembrando-se dele, foram espiá-lo na gruta e descobriram com espanto o resultado de seu trabalho, que mostrava 120 metros de profundidade, cavados na montanha. Isso despertou novamente a esperança do povo  junto com ela ressurgiu a confiança e o respeito por Ryokai, cada vez mais magro. Os aldeões sentiram-se envergonhados de sua indiferença e ignorância. Resolveram ajudá-lo mais uma vez e o eco animado das marretas voltou a soar dentro do túnel. Foram abertos alguns buracos na parte lateral do túnel para iluminar e ventilar a gruta.


      Porém, depois de um ano, o monge Ryokai ficou novamente sozinho. Os aldeões dessa região levavam uma vida muito difícil e eram muito pobres. Para sustentarem suas famílias não podiam abandonar o seu trabalho na lavoura. Assim, todos os colaboradores, um por um, foram abandonando a obra na gruta. Escutava-se um único eco daquela marreta viva que ficou sozinha, jogada na gruta úmida, fria e escura, durante dias e noites.


      No espírito concentrado de Ryokai não se encontrava nada das coisas passadas e futuras. Ele estava concentrado na realização constante e na aplicação máxima de toda a sua capacidade no agora, no momento. A decisão absoluta, a vontade ardente e o amor veemente de Ryokai superam a resistência da enorme rocha. Cada pancada da marreta era a vida inteira de Ryokai, que depois de 18 anos de espantoso trabalho conseguiu chegar a metade da realização da obra do túnel.


      Os habitantes das aldeias da região do rio Yamakuni sentiram o grande impacto das pancadas daquela marreta divina que conseguiu chegar a um resultado extraordinário e milagroso devido a perseverança do monge Ryokai. Agora ninguém mais duvidava da realização da obra de Ryokai. Todas as pessoas daquela região se levantaram e colaboraram  naquele trabalho. Também o governo local promoveu esforços para a conclusão do túnel do rio Yamakuni. 


      Desse momento em diante, a obra do túnel começou a se adiantar rapidamente como o fogo no capim seco em um grande campo. Todos os aldeões insistiam para que o monge Ryokai, em um estado muito enfraquecido e dolorido, repousasse para se recuperar, mas ele recusava, obstinadamente, esse pedido do povo.


      Esse desejo ardente daquela gente tinha uma razão de ser. Ryokai estava muito enfraquecido, seus joelhos estavam perdendo a capacidade de articulação e ele já quase nem podia andar, como conseqüência de seu ininterrupto trabalho no fundo daquela gruta escura. Sua vista também estava extremamente enfraquecida por causa da falta de luminosidade e do ferimento causado pelos salpicos das pedras despedaçadas.


      Ele não tinha nenhum apego a sua própria vida, mas sabia que não podia morrer antes de terminar a sua obra.


"Mais dois anos de perseverança!", dizia para si mesmo, e continuava seu trabalho.


      Foi então que para extinguir a sua vida, que era uma frágil luz de vela diante do sopro do vento, apareceu-lhe o inimigo derradeiro e decisivo. Esse perigo era incomparavelmente mais grave do que o enfraquecimento do seu corpo.


      Voltemos ao tempo em que o senhor feudal Saburobei Nakagawa foi assassinado pelo seu vassalo Ichikuro. Logo após esse acontecimento, toda a família de Saburobei, inclusive Jitsunossuke, seu único herdeiro, de três anos de idade, foi expulsa do seu castelo, por mando do governo central, por ter causado desordem naquela base do governo estadual.


      Jitsunossuke foi acolhido por seus parentes e, quando atingiu a idade de 13 anos, soube do trágico assassinato de seu pai pela mão de um de seus próprios vassalos, Ichikuro. Também lhe haviam dito que a única possibilidade de voltar ao castelo em que nascera era a realização da vingança completa da morte de seu pai.


      Jitsunossuke começou um treinamento severo na arte da esgrima na academia Yagyu, a melhor da capital. Quando completou 19 anos, permitiram-lhe que viajasse para procurar o assassino de seu pai, a fim de vingá-lo. Sua família depositava nele a esperança de voltar ao castelo.


      Ele procurou ansiosamente o seu inimigo por várias províncias do Japão, enfrentando grandes dificuldades e sacrifícios. Durante sete anos peregrinou por todos os principais lugares do país. Ele precisava constantemente lutar consigo mesmo, pois estava desgostoso e aborrecido porque, apesar de todos os seus desgastes e dificuldades, não havia encontrado nenhuma notícia de seu inimigo. Não conhecia o seu inimigo pessoalmente, pois nunca o vira. Para fortalecer seu espírito de vingança, ele precisava se lembrar constantemente da morte trágica do seu pai e da grande responsabilidade de reconstrução de sua família tradicional.


      Após peregrinar por nove primaveras, ele chegou a província de Oita, na ilha de Kyushu. Nessa província havia um templo famoso chamado "Ussa-Hatiman-Gu". Jitsunossuke fez uma visita respeitosa a esse templo, rezando para que se realizasse a sua promessa. Logo depois, ele ouviu um relato interessante de alguns viajantes que conversavam numa tenda de descanso. Eles falavam sobre a realização de uma obra interessante e milagrosa por um eminente monge, na aldeia Hida. Porém a antecedência desse monge era suspeita: falavam que ele tinha sido um assassino e consideravam que a construção daquela obra era o resultado de sua confissão concentrada para expiar o seu crime.


      Quando Jitsunossuke escutou esse relato dos viajantes, interpelou-os ansiosamente: "Eu quero saber o nome, a idade, a fisionomia, a altura e o lugar de nascimento desse monge". Contaram-lhe que o nome dele era Ryokai e sua idade era de aproximadamente 60 anos. Sua terra natal era  a província de Ichigo. Justamente em Ichigo estava o castelo que outrora fora do pai de Jitsunossuke. Ele não teve dúvidas de que esse monge era o seu inimigo fatal. Pediu informações mais detalhadas da localização da aldeia Hida aos viajantes e partiu apressada e loucamente para lá.


      Finalmente, Jitsunossuke chegou a entrada do túnel, onde os homens se movimentavam ativamente, carregando pedaços de pedra. Conversando com os trabalhadores, ele confirmou a presença de seu inimigo no túnel. E, logo em segui


da, pediu que avisassem o monge Ryokai que um visitante vindo de um lugar distante estava na entrada do túnel, esperando para falar com ele.


      Jitsunossuke imaginava a fisionomia de seu inimigo como a de um homem musculoso, forte, poderoso, vigoroso, porque o próprio Ryokai era quem atualmente estava comandando todos os povos dessa região para realizar aquela grande obra. E mais ainda, seu inimigo era um samurai famoso pela grande capacidade na arte da esgrima e no estudo da tática.


      Jitsunossuke preparou-se para enfrentar um inimigo forte, tomou uma postura e aprontou sua espada. Depois de algum tempo o monge apareceu na entrada do túnel, muito magro, com as barbas e os cabelos muito longos, arrastando seu corpo como um clunâmbulo, como um sapo.


      Jitsunossuke, espantado, olhou fixamente para aquele homem que era um cadáver vivo. Um monge miserável, com suas roupas rasgadas, seus braços e pernas cheios de chagas, seus cabelos e barbas crescidos revoltamente. Dirigiu-lhe então a palavra: "Desculpe-me, eu não posso reconhecer o senhor, porque minha presbiopia está forte demais".


      Diante da fragilidade do monge, Jitsunossuke sentiu-se decepcionado, desanimado, perdendo de imediato seu espírito de ódio e de vingança acumulada. Ele precisou excitar a sua coragem para enfrentá-lo, reavivando a imagem do inimigo que ele havia formado dentro de si. Perguntou: 


"Seu nome é Ryokai?"


      "Sim, meu nome é Ryokai. E o senhor, quem é?", replicou curioso o velho monge.


      "Muito bem, senhor Ryokai, eu quero confirmar seu nome anterior. É Ichikuro?"


      "Sim", respondeu o monge.


      "O senhor deve estar lembrado do grave crime que cometeu no tempo de sua juventude. Acredito que seja o assassino fugitivo do senhor feudal Saburobei Nakagawa. Eu sou o filho único de Saburobei, e chamo-me Jitsunossuke. Agora não há mais possibilidade de você fugir. Prepare seu corpo e entregue-me obedientemente sua vida inteira, para receber o golpe final do castigo divino".


      Ryokai nem se alterou. Escutou as palavras de Jitsunossuke silenciosamente e respondeu, com uma emoção profunda e saudosa:


      "Exatamente. Eu sou o assassino fugitivo de seu pai. Fico muito satisfeito por encontrar-me finalmente com o senhor, agora".


      Jitsunossuke comoveu-se ante a figura do monge, mas continuou as suas palavras, resistindo a vacilação que é própria do sentimento humano. "Então, prepare-se, fique em postura própria para aceitar o castigo divino pelo seu crime".


      Ryokai concordou, calmamente, com a ordem de Jitsunossuke. Porém, interiormente, lamentou-se profundamente, pois sua obra ainda estava incompleta. Ele esperava ver a realização integral do túnel. Ele havia apostado a sua vida inteira, ardentemente, durante mais de 20 anos seguidos na execução do túnel e pensou: "Eu não tenho o direito de abusar mais da caridade de deus. Esta é a recompensa dos meus crimes".


      Ele preparou-se para morrer, dizendo: "Senhor Jitsunossuke, estou pronto! Quero receber, imediatamente, o castigo. O senhor ficará muito satisfeito em dar cabo a minha vida com a sua espada, perante a minha obra quase acabada".


      Jitsunossuke sentiu seu coração vacilar, pensando no significado da sua vingança para com esse monge velho, obediente, honesto, que aceitava e concordava com tudo, sem impor nenhuma condição. Ele sentiu desaparecer o motivo fatal da sua vingança. Porem, se ele não a realizasse, não castigasse aquele homem, perderia a única possibilidade de reconstrução de sua família. Toda a dificuldade e o sofrimento destes longos nove anos de sua peregrinação perderiam o seu sentido. Jitsunossuke empunhou a sua espada, aproximando-se de Ryokai. Nesse momento, ouviram-se altos brados dos trabalhadores do túnel e logo em seguida cinco a seis pessoas se colocaram entre Ryokai e Jitsunossuke, impedindo-os de realizar qualquer movimento.


      "Senhor, o que está querendo fazer com o nosso mestre Ryokai?", gritaram eles.


      "Não estorvem este ato! A causa dele é muito antiga! Não permitirei que ninguém continue impedindo a minha decisão". Falou Jitsunossuke com sua espada fora da bainha.


      Mas aquela gente cercou o monge Ryokai e o protegeu com seus próprios corpos. E um velho advertiu:


      "Não existe luta de hostilidade mútua no mundo purificado e nem existe relação entre inimigo e amigo. Veja bem , senhor samurai!".


      O povo daquela região do rio Yamakuni acreditava que o monge Ryokai era a reaparição de um santo poderoso e ninguém podia tocá-lo nem com a ponta do dedo.


      Porém, apesar de toda aquela gente reunida estar contra a sua vontade, Jitsunossuke ainda precisava cumprir a sua decisiva missão, mostrando o espírito sério de um samurai.


      "Ninguém pode permitir um crime de assassinato ao seu senhor, mesmo que esse assassino seja um santo ou um monge. Abram já o caminho! O diálogo é inútil!".


      Jitsunossuke preparou a sua postura empunhando a espada, porém aqueles homens também se acautelaram contra aquele ataque, tomando suas atitudes.


      Nesse momento, o monge Ryokai gritou com voz firme:


      "Contenham-se todos! Deixem-me! As suas atitudes para defender-me são inúteis! Eu devo entregar obedientemente a minha vida a esse filho fiel e obediente ao pai".


      Quando o monge Ryokai, libertando-se da proteção das pessoas, começou a aproximar-se de Jitsunossuke, o chefe dos pedreiros adiantou-se e falou:


      "Senhor samurai, nós que o senhor considere uma possibilidade de prorrogamento, de adiamento da vingança, até que o trabalho do túnel esteja terminado. Nós esperamos uma manifestação de sua consciência, para que nos entregue a vida do monge Ryokai, durante mais um tempo, até o término desta obra pela qual ele aposta a vida.

      Quando o túnel atravessar a montanha, o senhor poderá legalizar, imediatamente, sua decisão".


      Quando o chefe dos pedreiros terminou a sua súplica, a multidão gritou, apoiando suas palavras. Jitsunossuke finalmente concordou com a opinião deles, aceitando aquelas condições.


      Porém, quando a multidão se afastou e Jitsunossuke se viu sozinho, sentiu-se arrependido e se lamentou por Ter perdido a oportunidade de vingar-se, ao aceitar, involuntariamente, a súplica inesperada daquela gente. Quando se lembrou dos nove anos agora perdidos, sua paciência se esgotou. Lembrou-se com saudade de sua família. Sua cabeça e seu coração foram se transtornando de impaciência e de irritação, chegando até a perder a consciência e o domínio de seus próprios atos.


      Decidiu executar sua vingança entrando no túnel, secretamente, na madrugada daquela noite. Porém, essa decisão não foi realizada nessa ocasião, porque a vigilância dos pedreiros na entrada do túnel estava muito rigorosa. No quinto dia de espera, às três horas da madrugada, conseguiu entrar silenciosa e furtivamente dentro do túnel. Continuou andando, apoiando suas mãos na parede do túnel. Continuou andando, aproximadamente 30 a 40 minutos, até escutar um rumor intermitente que vinha do fundo do túnel. Esse som aumentava cada vez mais, acompanhando  o movimento de cada passo de Jitsunossuke. Quando ele sentiu que estava próximo do monge, seu coração começou a palpitar cada vez mais forte, ao ritmo dos choques violentos criados pelos sons de cada pancada da marreta de Ryokai. Ele foi se aproximando pouco a pouco de Ryokai, acompanhando o som de cada pancada da marreta. Enfim, Jitsunossuke conseguiu aproximar-se de seu inimigo naquela escuridão, mas quando chegou perto de Ryokai, com sua espada já empunhada, ele ouviu a voz indistinta do monge que rezava as doutrinas sagradas, acompanhando ritmadamente o som de cada pancada. Aquela voz rouca e trágica, penetrou em suas vísceras e arrepiou seu corpo inteiro, e ele se sentiu completamente hipnotizado, parecendo perder toda a sua capacidade de resistência.


      Jitsunossuke enxergou embaraçadamente a figura de Ryokai sentado no meio da escuridão, marretando seriamente  a rocha, dentro daquele mundo silencioso. Ninguém estava acordado nesse momento. Até as almas dormiam. A figura de Ryokai não tinha a forma de um homem. Era uma massa de energia concentrada. Jitsunossuke perdeu os sentidos. Quando voltou a si, já estava completamente derrotado pela manifestação inviolável daquele sumo sacerdote. Ele saiu do túnel com o corpo todo suado. Decidiu que esperaria o prazo proposto.


      Alguns dias após esse acontecimento, Jitsunossuke se propôs também a participar do trabalho do túnel, acompanhando os pedreiros e os homens que carregavam os pedaços de pedra. Ao lado do monge Ryokai, ele enfrentaria a rocha dura, no fundo do túnel, com uma marreta e escopro pesado. Jitsunossuke sentiu esse trabalho muito pesado, bem mais do que ele imaginara. Ele reconheceu a dificuldade e o sofrimento do monge Ryokai que vinha trabalhando durante mais de vinte anos seguidos.


      Depois de um ano de trabalho, Jitsunossuke transformou-se completamente. Ele se esqueceu e desapegou de tudo. Ele reconheceu o verdadeiro valor do ser humano autentico. Agora, inconscientemente, respeitava profundamente o monge Ryokai. Penetrava-lhe na alma a vibração da auto-realização infinita e da auto-libertação verdadeira, por causa da concentração de toda a sua capacidade em cada momento. 


      Mais meio ano se passou e o trabalho do túnel chegava ao fim.


      Na madrugada d um dia de novembro de 1748, o monge Ryokai deu uma forte pancada de marreta na rocha que se despedaçou para fora, entreabrindo uma brecha na montanha. Ryokai exclamou: "Oh", e contemplou o céu estrelado, a paisagem silenciosa e o rio que espelhava o reflexo da lua, pela clarabóia recém aberta. Ryokai levantou-se lentamente, segurando-se na parede da caverna.


      "Minha prece está realizada!" . Lágrimas correram silenciosamente e sucessivamente pelo seu rosto. Logo em seguida ele chamou Jitsunossuke, mostrando-lhe a paisagem noturna da correnteza do rio Yamakuni pela brecha recém aberta.


      "Parabéns! Parabéns! Mestre Ryokai!", gritou Jitsunossuke, abraçando fortemente Ryokai. E, profundamente emocionados eles choraram.


      Depois de alguns momentos, o monge Ryokai falou, calmamente a Jitsunossuke: " Senhor Jitsunossuke, agora, neste momento, terminou o prazo de nosso compromisso! Por favor, eu quero saldá-lo imediatamente! Não deve haver mais demora, porque quando aparecerem os pedreiros, provavelmente impedirão sua realização. Mate-me logo! Realize a sua vingança!".


      A aurora despontava e a voz grave e rouca do monge Ryokai ecoou dentro do túnel, acompanhada da correnteza de ar puro que entrava por esse lado da montanha.


      Jitsunossuke ajoelhou-se em frente a Ryokai e chorou continuadamente.


      Eles se abraçaram novamente e, juntos, choraram repletos de alegria.









































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terça-feira, 6 de agosto de 2024

O que é religião?

O que é religião?


Escrito em 1899


I

Afirma-se que um Deus infinito criou todas as coisas, que governa todas as coisas e que suas criaturas devem ser obedientes e gratas ao criador; que tal criador exige certas coisas, e a pessoa que concorda com tais demandas é religiosa. Este tipo de religião tem sido substancialmente universal.


Por muitos séculos e em muitos povos existiu a crença que tal Deus exigia sacrifícios — que lhe agradava quando pais derramavam o sangue de seus bebês. Posteriormente, supôs-se que ficava satisfeito com o sangue de bois, cordeiros e pombas, e que, em troca ou em consideração a tais sacrifícios, Deus dava a chuva, o sol e a colheita. Também se acreditava que se os sacrifícios não fossem feitos, este Deus enviaria pestilência, fome, inundação e terremotos.


A última fase desta crença no sacrifício foi, de acordo com a doutrina cristã, que Deus aceitou o sangue de seu filho — que, depois de seu filho ter sido assassinado, ele, Deus, satisfez-se e deixou de desejar sangue.


Durante todos esses anos e em todos esses povos, havia a crença de que este Deus ouvia e respondia orações, que perdoava pecados e salvava as almas dos verdadeiros fiéis. Isso, de um modo genérico, é a definição de religião.


Agora, as questões são estas: será que a religião foi fundamentada em qualquer fato conhecido? Será que este tipo de ser — Deus — existe? Será que foi ele quem nos criou? Será que alguma oração já foi respondida? Será que algum sacrifício de bebês ou bois assegurou a mercê deste Deus invisível?


Primeiro:


Um Deus infinito criou os homens?


Por que criou os intelectualmente inferiores?


Por que criou os deformados e os desvalidos?


Por que criou os criminosos, os dementes, os loucos?


O poder e a sabedoria infinitas podem apresentar qualquer justificativa para a criação dessas falhas?


Tais falhas estão sob a obrigação de seu criador?


Segundo:


Um Deus infinito é o governador deste mundo?


É o responsável por todos os chefes, reis, imperadores e rainhas?


É o responsável por todas as guerras que foram travadas, por todo o sangue inocente que foi derramado?


É o responsável por séculos de escravidão, pelas costas que foram feridas pelo flagelo, pelos bebês que foram vendidos ainda no seio de suas mães, pelas famílias que foram separadas e destruídas?


Este Deus é o responsável pela perseguição religiosa, pela Inquisição e por todos os instrumentos de tortura?


Este Deus permitiu que os cruéis e vis destruíssem os bravos e os virtuosos? Permitiu que tiranos derramassem o sangue de patriotas?


Permitiu que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos?


Quanto vale um Deus dessa espécie?


Um homem decente, tendo poder para evitá-lo, permitiria que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos?


É possível concebermos uma malevolência suficiente para dar preferência aos inimigos em vez dos amigos?


Se um Deus bondoso e infinitamente poderoso governa este mundo, como podemos justificar os ciclones, os terremotos, a pestilência e a fome?


Como podemos justificar o câncer, os micróbios, a difteria e o milhar de outras doenças que atacam durante a infância?


Como podemos justificar as bestas selvagens que devoram seres humanos e as serpentes cujas mordidas são letais?


Como podemos justificar um mundo onde a vida alimenta-se da vida?


Será que os bicos, garras, dentes e presas foram inventados e produzidos pela infinita misericórdia?


A bondade infinita deu asas às águias para que suas presas fugazes pudessem ser arrebatadas?


A bondade infinita criou os animais de rapina com a intenção de que eles devorassem os fracos e os desamparados?


A bondade infinita criou as inumeráveis criaturas inúteis que se reproduzem dentro de outros seres e se alimentam de sua carne?


A sabedoria infinita produziu intencionalmente os seres microscópicos que se alimentam do nervo óptico?


Pense na ideia de cegar um homem para satisfazer o apetite de um micróbio!


Pense na vida alimentando-se da própria vida! Pense nas vítimas! Pense no Niagara de sangue se derramando no precipício da crueldade!


Tendo em vista tais fatos, o que é, afinal, a religião?


É o medo.


O medo constrói altares e oferece sacrifícios.


O medo erige catedrais e curva a cabeça dos homens em adoração.


O medo dobra os joelhos e profere as orações.


O medo finge amar.


A religião ensina virtudes escravizantes — obediência, humildade, autonegação, perdão e conformismo.


Lábios — religiosos e tementes — repetem, tremulantes, esta passagem: “Ainda que ele me mate, nele confiarei” (cf. Jó — 13:15). Isso é um abismo de degradação.


A religião não ensina autoconfiança, independência, hombridade, coragem, autodefesa. A religião faz de Deus o mestre e do homem seu servo. E tal mestre não consegue ser suficientemente grandioso para fazer da escravidão algo aprazível.


II

Se Deus existe, como podemos saber se ele é bom? Como podemos provar que é misericordioso, que se importa com sua criação? Se tal Deus existe, então viu, em muitas ocasiões, milhões de suas pobres criaturas arando os campos, semeando grãos, e quando os viu, sabia que dependiam da colheita para sobreviver e, ainda assim, esse bondoso Deus, esse ser compassivo, não lhes proveu chuva. Fez o sol nascer, roubando da terra toda a umidade, e não enviou chuva. Viu as sementes que os homens plantaram murchar e perecer, mas não enviou chuva. Viu as pessoas olharem, com tristeza, a terra estéril, e não enviou chuva. Viu-os, lentamente, devorar o pouco que tinham, e viu-os quando vieram os dias de fome — viu-os definhando lentamente, viu-os famélicos, com seus olhos combalidos; ouviu suas preces, viu-os devorar os miseráveis animais que tinham, viu pais e mães, ensandecidos pela fome, matando e comendo seus bebês depauperados — e, apesar de o céu sobre eles ser como bronze e a terra abaixo como ferro, não enviou qualquer chuva. Podemos dizer que, no coração deste Deus, havia a flor da piedade? Podemos dizer que se importa com sua criação? Podemos dizer que sua piedade é eterna?


Constitui uma prova de que este Deus é bondoso o fato de ele enviar ciclones que destroem vilarejos e cobrem os campos com corpos desfigurados de pais, mães e bebês? Constitui uma prova de sua bondade ver que ele abriu precipícios na terra que engoliram milhares de crianças indefesas? Ou será que ele é bom porque vulcões os devastaram em rios de fogo? Podemos inferir que Deus é bondoso a partir dos fatos que conhecemos?


Se essas calamidades não ocorressem, suspeitaríamos que Deus não se importa com os seres humanos? Se não houvesse fome, pestilência, ciclones ou terremotos, pensaríamos que Deus não é bom?


De acordo com os teólogos, Deus não fez todos os homens iguais. Fez raças que diferem em inteligência, estatura e cor. Há algum traço de bondade, de sabedoria nisso?


Deveriam as raças superiores agradecer a Deus pelo fato de não serem inferiores? Se dissermos que sim, então faço outra pergunta: deveriam as raças inferiores agradecer a Deus por não serem superiores, ou talvez deveriam agradecer a Deus por não serem bestas selvagens?


Quando Deus fez essas raças diferentes, sabia que as superiores escravizariam as inferiores, sabia que os inferiores seriam conquistados e, finalmente, destruídos.


Se Deus fez isso, se sabia do sangue que seria derramado, das agonias que seriam enfrentadas, se viu os incontáveis campos repletos de cadáveres, se viu as costas ensanguentadas dos escravos, todos os corações partidos das mães cujos bebês foram roubados — se Deus viu e sabia disso tudo, será que conseguiríamos conceber um demônio mais malevolente?


Por que, então, deveríamos dizer que Deus é bondoso?


As paredes úmidas dos calabouços contra as quais os bravos e os generosos viram-se definhar, os patíbulos manchados e glorificados com sangue nobre, os escravos sangrando e sem uma gota de esperança, os mártires que foram envolvidos em chamas, os virtuosos estirados em aparelhos de tortura, vendo suas juntas e músculos desfazendo-se, os corpos feridos e sanguinolentos dos justos, os olhos que foram extintos por buscarem a verdade, os incontáveis patriotas que lutaram e pereceram em vão, as esposas exploradas, espancadas e infelizes, os rostos esquálidos de bebês desprezados, os milhões de assassinados no passado, as vítimas de vendavais, inundações e incêndios, as forças aprisionadas da Terra, os trovões e raios, as torrentes de lava escaldante, a fome, a praga e as dores intermináveis, as bocas pingando sangue, as presas que envenenam, os bicos que ferem e dilaceram, o triunfo da escória, as leis e o poder dos corruptos, as coroas que a crueldade vestiu, os hipócritas de batina, com suas mãos ensanguentadas e unidas em oração, agradecendo seu Deus — este fantasma demoníaco — pela liberdade ter sido banida do mundo: essas recordações de um passado amedrontador, esses horrores ainda existem. Tais fatos aterrorizantes negam a existência de qualquer Deus que deseja e possui poder para proteger e abençoar a raça humana.


III

A maior parte das pessoas se apega ao sobrenatural. Se abandonarem um Deus, logo em seguida imaginam outro. Tendo posto Jeová de lado, falam sobre o poder que trabalha pelo bem.


O que é este poder?


O homem avança, e necessariamente avança através da experiência. Um homem, desejando ir a um certo local, chega a um ponto onde a estrada bifurca-se. O homem segue pelo caminho da esquerda, acreditando ser esse o caminho certo, e continua a viajar até descobrir que tomou o caminho errado. Então redefine seu percurso e toma o caminho da direita, chegando, assim, ao local desejado. A próxima vez em que o homem quiser ir àquele lugar, não seguirá pelo caminho da esquerda, pois já fez essa trajetória e sabe que é errada. Assim, ele segue pelo caminho da direita, e por isso os teólogos dizem: “Há um poder que trabalha pelo bem”.


Uma criança, encantada pela beleza de uma chama, tenta pegá-la com a mão. A mão é queimada, e após isso a criança mantém sua mão longe do fogo. O poder que trabalha pelo bem ensinou uma lição à criança.


A experiência acumulada do mundo é o poder e a força que trabalha pelo bem. Essa força não é consciente, não é inteligente. Não tem vontade, não tem objetivo. É somente um resultado.


Milhares também tentaram estabelecer a existência de Deus pelo fato de termos aquilo que se denomina senso moral; isto é, uma consciência.


Teólogos e muitos dos assim chamados “filósofos” insistem que este senso moral, este senso de dever, de obrigação, veio de fora, e que a consciência é algo especial. Partindo da ideia de que este senso moral não foi produzido aqui, que não foi produzido pelos homens, então imaginam um Deus do qual isso proveio.


O homem é um ser social. Vivemos juntos em famílias, tribos e nações.


Os membros de uma família, de uma tribo ou de uma nação que aumentam a felicidade da família, da tribo ou da nação são considerados bons membros. São elogiados, admirados e respeitados. São considerados bons, isto é, morais.


Os membros que produzem miséria na família, na tribo ou na nação são considerados maus membros. São acusados, desprezados e punidos. São considerados imorais.


A família, a tribo, a nação, criam padrões de conduta, de moralidade. Não há qualquer coisa de sobrenatural nisso.


O mais grandioso dos seres humanos disse: “A consciência nasce do amor”.


Este senso de obrigação, de dever, foi produzido naturalmente.


Entre selvagens, as consequências imediatas das ações são levadas em consideração. Na medida em que os povos avançam, as consequências mais distantes são percebidas. O padrão de conduta torna-se mais elevado. A imaginação é cultivada. O homem torna-se capaz de colocar a si mesmo no lugar do outro. O senso de dever torna-se mais forte, mais imperativo. O homem passa a julgar a si próprio.


O homem ama, e o amor é o princípio, a fundação das mais elevadas virtudes. Se fere alguém que ama, então vem o remorso, o arrependimento, a tristeza, a consciência. Nisso tudo não há nada de sobrenatural.


O homem enganou a si próprio. A natureza é um espelho no qual o homem vê sua própria imagem, e todas as religiões sobrenaturais se embasam na pretensão de que a imagem, que parece estar por detrás deste espelho, foi alcançada.


Todos os metafísicos espiritualistas, de Platão a Swedenborg, manufaturaram seus fatos, e todos os fundadores de religião têm feito o mesmo.


Suponhamos que um Deus infinito exista. O que podemos fazer por ele? Sendo infinito, também é incondicional; sendo incondicional, não pode ser beneficiado ou prejudicado. Deus não pode querer: ele tem.


Pense no egotismo de um homem que acredita que um ser infinito deseja suas preces!


IV

O que nossa religião produziu? Obviamente, os cristãos admitem que todas as outras religiões são falsas, e consequentemente precisamos examinar apenas a nossa.


O cristianismo deu luz a algo bom? Tornou o homem mais nobre, mais compassivo, um pouco mais honesto? Quando a Igreja tinha o controle, isso tornou os homens melhores e mais felizes?


Qual foi o efeito do cristianismo na Itália, na Espanha, em Portugal e na Irlanda?


O que a religião fez pela Hungria ou pela Áustria? Qual foi o efeito do cristianismo na Suíça, na Holanda, na Escócia, na Inglaterra, na América? Sejamos honestos. Esses países poderiam ter sido piores sem religião? Poderiam ter sido piores se tivessem qualquer outra religião, que não o cristianismo?


Torquemada teria sido pior se tivesse sido um seguidor de Zoroastro? Calvino teria sido mais sanguinário se tivesse acreditado na religião dos habitantes das Ilhas do Sul? Os holandeses teriam sido mais tolos se tivessem negado o Pai, Filho e Espírito Santo e, em vez disso, adorassem a sagrada trindade da salsicha, da cerveja e do queijo? John Knox teria sido pior se tivesse deserdado Cristo e se tornado um seguidor de Confúcio?


Peguemos nossos caros e compassivos patriarcas puritanos. O que o cristianismo fez por eles? Os fez odiar o prazer. Na porta da vida penduraram as vestimentas da morte. Eles silenciaram todos os sinos da alegria. Faziam berços embalando caixões. No ano puritano havia doze dezembros. Tentaram fazer desaparecer a infância e a juventude, o canto de bebês e a melodia da manhã.


A religião dos puritanos era uma pura maldição. Os puritanos acreditam que a Bíblia é a palavra de Deus, e esta crença sempre fez aqueles que a portaram cruéis e vis. Os puritanos teriam sido piores se tivessem adotado a religião dos índios da América do Norte?


Permitam que eu me refira a apenas um fato que demonstra a influência da crença na Bíblia em seres humanos: “No dia da coroação da rainha Elizabeth, ela foi presenteada com uma Bíblia por um velho homem representando o Tempo, com a verdade sentada ao seu lado como uma criança. A rainha recebeu a Bíblia, beijou-a, e empenhou-se em lê-la diligentemente. Em dedicação a esta Bíblia abençoada, a rainha foi piamente exortada a passar todos os papistas pelo fio da espada”.


Neste incidente vemos o real espírito dos protestantes que amam a Bíblia. Em outras palavras, é tão demoníaco, tão infame quanto o espírito católico.


A Bíblia fez com que o povo da Geórgia se tornasse gentil e compassivo? Os linchadores seriam mais ferozes se adorassem deuses de madeira e pedra?


V

A religião foi utilizada e, em todos os países, em todos os tempos, ela falhou.


A religião nunca tornou o homem misericordioso.


Lembre-se da Inquisição.


Que efeito teve a religião na escravidão?


A religião sempre foi inimiga da ciência, da investigação e do livre-pensamento.


A religião nunca tornou os homens livres.


Nunca tornou o homem moral, moderado, laborioso e honesto.


Os cristãos são mais moderados, sequer mais virtuosos, sequer mais honestos que selvagens?


Entre selvagens não percebemos claramente que seus vícios e crueldades são fruto de suas superstições?


Para aqueles que acreditam na uniformidade da natureza, a religião é impossível.


Podemos afetar a natureza e as características da matéria através da oração? Podemos apressar ou atrasar as marés através da oração? Podemos mudar a direção dos ventos oferecendo sacrifícios? Se nos ajoelharmos, isso nos trará saúde? Podemos curar uma doença através da súplica? Podemos enriquecer nosso conhecimento através de uma cerimônia? Podemos receber virtude ou honra como esmolas?


Não são os fatos do mundo mental produzidos de um modo tão necessário quanto os fatos do mundo material? Deste modo, aquilo que chamamos de mente não é precisamente tão natural quanto aquilo que chamamos de corpo?


A religião apoia-se na ideia de que a natureza tem um Mestre, que este mestre ouve preces e orações, que este mestre pune e recompensa, que ama a adoração e a lisonja e odeia os bravos e os livres.


O homem obteve, alguma vez, qualquer ajuda do céu?


VI

Se temos uma teoria, precisamos de fatos para fundamentá-la. Precisamos de embasamento empírico. Não podemos construir nosso conhecimento através da intuição, de fantasias, de analogias ou inferências. A estrutura precisa de uma fundamentação. Se pretendemos construir, devemos começar pelo alicerce.


Tenho uma teoria e tenho quatro fundamentos para ela.


O primeiro fundamento é que a matéria — a substância — não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.


O segundo é que a força não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.


O terceiro é que matéria e força não podem existir separadamente — nenhuma matéria à parte da força e nenhuma força à parte da matéria.


O quarto é que aquilo que não pode ser destruído também não pode ser criado — que o indestrutível é incriável.


Se essas quatro proposições são fatos, segue-se necessariamente que a matéria e a força são eternas, que não podem ser aumentadas ou diminuídas.


Segue-se que nada foi ou pode ser criado, que nunca houve ou pode haver um criador.


Segue-se que não pode haver qualquer inteligência, qualquer intenção por detrás da matéria e da força.


Não há inteligência sem força. Não há força sem matéria. Consequentemente, não há qualquer possibilidade de ter existido uma inteligência, uma força por detrás da matéria.


Logo, o sobrenatural não existe e não pode existir. Se essas quatro proposições são fatos, a natureza não tem qualquer mestre. Se a matéria e a força são eternas, segue-se necessariamente que Deus não existe, que nenhum Deus criou ou governa o Universo, que nenhum Deus existe para responder às orações, que nenhum Deus socorre os oprimidos, que nenhum Deus se compadece com o sofrimento dos inocentes, que nenhum Deus se importa com os maus tratos dispensados aos escravos ou com as mães que perderam seus bebês, que nenhum Deus resgata os torturados, que nenhum Deus salva os mártires das chamas. Em outras palavras, isso prova que o homem nunca recebeu qualquer ajuda do céu, que todos os sacrifícios foram em vão e que todas as preces foram proferidas ao vento, sem ninguém para ouvi-las. Não finjo saber — apenas digo o que penso.


Se matéria e força são eternas, segue-se que tudo que foi possível já aconteceu, que tudo que é possível está acontecendo e que tudo que será possível acontecerá.


No Universo não há acaso, não há caprichos. Todos eventos têm seu antecedente.


Aquilo que nunca aconteceu não poderá acontecer. O presente é o produto necessário de todo o passado, a causa necessária de todo o futuro.


Na cadeia infinita de eventos não há — e não pode haver — qualquer elo quebrado, qualquer elo faltando. A forma e o movimento de cada estrela, o clima do mundo todo, todas as formas de vida animal e vegetal, todos instintos, a inteligência e a consciência, todas as afirmações e negações, todos os vícios e virtudes, todos os pensamentos e sonhos, todas as esperanças e medos, são necessidades. Nenhuma das incontáveis coisas e relações no Universo poderia ser diferente.


VII

Se a matéria e a força são eternas, então podemos dizer que o homem não teve um criador inteligente, que o homem não foi uma criação especial.


Sabemos — se é que sabemos qualquer coisa — que Jeová, o oleiro divino, não misturou e moldou barro na forma de homens e mulheres e então lhes soprou o sopro da vida.


Sabemos agora que nossos primeiros pais não eram “estrangeiros” neste mundo. Sabemos que eram nativos, que foram produzidos aqui, que suas vidas não foram criadas pelo sopro de qualquer divindade. Sabemos agora — se é que sabemos qualquer coisa — que o Universo é natural e que os homens e as mulheres surgiram naturalmente. Atualmente, sabemos quais são nossos ancestrais, podemos fazer nossa árvore genealógica.


Temos todos os elos da corrente — e não obtivemos tais informações de livros inspirados. Temos fatos: fósseis e formas vivas.


Das criaturas mais simples, de uma sensação cega, de uma forma viva rudimentar, de um desejo vago, até uma única célula com núcleo, até uma estrutura cheia de fluido, até uma estrutura com paredes duplas, até um verme achatado, até algo que já respira, até um organismo que possui uma medula espinhal, até um elo entre os invertebrados e os vertebrados, até um que possui um crânio — uma casa para o cérebro —, até uma forma dotada de barbatanas e, em seguida, outra com barbatanas posteriores e anteriores, até os répteis, até os mamíferos, até os marsupiais, até os lêmures habitantes de árvores, até os simiescos e, finalmente, até o homem.


Conhecemos os caminhos que a vida percorreu. Conhecemos as pegadas da evolução — elas foram traçadas. O último elo foi encontrado. Por isso, estamos em débito, acima de tudo, ao maior dos biólogos, Ernest Haeckel.


Acreditamos agora que o Universo é natural; negamos a existência do sobrenatural.


VIII

Por milhares de anos homens e mulheres têm tentado reformar o mundo. Criaram deuses e demônios, paraísos e infernos; escreveram livros sagrados, realizaram milagres, construíram catedrais e calabouços; coroaram e destronaram reis e rainhas; maltrataram e aprisionaram, torturaram e queimaram pessoas vivas; pregaram e rezaram; valeram-se de promessas e ameaças; adularam e persuadiram; apregoaram e ensinaram; de diversos modos, empenharam-se em tornar as pessoas honestas, temperadas, laboriosas e virtuosas; construíram hospitais e asilos, universidades e escolas. Parecem ter feito o máximo que estava ao seu alcance para tornar a humanidade melhor e mais feliz, e ainda assim falharam.


Por que falharam? Vou dizer o porquê.


Ignorância, pobreza e vício estão povoando o mundo. A sarjeta transformou-se num berçário. Pessoas incapazes de sustentarem a si próprias enchem lares, casebres e choupanas de crianças, ficando à mercê do “Senhor”, da sorte e da caridade. Não são suficientemente inteligentes para pensar sobre as consequências ou sentir responsabilidade. Ao mesmo tempo, não querem crianças, pois estas são uma maldição — para os pais e para si próprias. O bebê não é bem-vindo porque, na verdade, constitui um fardo. Essas crianças inconvenientes abarrotam prisões, asilos, creches, hospitais, e também lotam os patíbulos. Poucas se salvam pelo acaso ou pela caridade, mas a grande maioria constitui um malogro. Elas se tornam viciosas, ferozes. Vivem através da fraude e da violência, e posteriormente transmitem seus vícios aos seus filhos.


Contra esta inundação de vícios, as forças reformistas são inúteis, e a própria caridade se converte em uma forma inconsciente de promover o crime.


O insucesso parece ser a “marca registrada” da natureza. Por quê? Porque a natureza não possui um projeto e tampouco inteligência. A natureza produz sem objetivo, sustenta sem intenção e destrói sem pensamento. O homem possui uma pequena inteligência, e deveria usá-la. O intelecto é a única coisa capaz de elevar a humanidade.


A verdadeira questão é esta: podemos evitar que os ignorantes, os pobres e os viciosos continuem abarrotando o mundo com seus filhos?


Podemos evitar que esse Missouri de ignorância e vício deságue no Mississipi da civilização?


Precisamos ser as eternas vítimas de uma paixão ignorante? O mundo pode ser civilizado a um ponto em que as consequências serão levadas em consideração por todos?


Por que homens e mulheres concebem filhos dos quais não podem cuidar, que são um fardo e uma maldição? Por quê? Porque possuem mais paixão do que inteligência, mais paixão do que consciência, mais paixão do que razão.


Não é possível reformar estas pessoas com panfletos ou conversas. Não é possível reformar essas pessoas com orações e credos. A paixão é — e sempre foi — surda. As armas da reforma são substancialmente inúteis. Criminosos, prostitutas, mendigos e malogros aumentam em número diariamente. As prisões, os asilos e os abrigos para pobres estão lotados. A religião está com as mãos atadas. A lei pode punir, mas não pode reformar criminosos e tampouco prevenir o crime. A maré do vício está subindo. A guerra que está sendo atualmente travada contra as forças do mal é tão vã quanto a guerra dos vaga-lumes contra a escuridão da noite.


Há apenas uma esperança. A ignorância, a pobreza e o vício precisam parar de povoar o mundo. Isso não pode ser feito pela moral. Isso não pode ser feito através discursos ou exemplos. Isso não pode ser feito pela religião ou pela lei, por padres ou por carrascos. Isso não pode ser feito através da força, seja esta física ou moral.


Para alcançar tal objetivo há apenas um modo. A ciência deve tornar a mulher a dona, a senhora de si mesma. A ciência é a única possível solução, ela deve conceder à mulher o poder de decidir por si mesma se deseja ou não se tornar uma mãe.


Isso soluciona toda a questão. Isso liberta a mulher. Os bebês que nascerem serão bem-vindos. Serão embalados com toda a felicidade. Encherão os lares de luz e felicidade.


Indivíduos que acreditam que escravos são mais puros e verdadeiros que os homens emancipados, que acreditam ser o medo um guia mais seguro que o conhecimento, que apenas os que obedecem ordens alheias são verdadeiramente bons e que a ignorância é o solo no qual a perfeição, a cheirosa flor da virtude cresce, irão cobrir suas faces chocadas com suas mãos em protesto.


Indivíduos que pensam que a luz é inimiga da virtude, que a pureza jaz na escuridão, que é perigoso que os seres humanos conheçam-se a si mesmos e os fenômenos naturais que afetam seu bem-estar ficarão horrorizados com a ideia de fazer da inteligência o mestre da paixão.


Contudo, anseio pelo dia em que homens e mulheres, guiados pela sua noção das consequências futuras, pela moralidade nascida da inteligência, se recusarão a perpetuar aflições e dores, se recusarão a abarrotar o mundo com malogros.


Chegado este tempo, cairão as paredes das prisões, os calabouços serão inundados de luz e a sombra do patíbulo não mais amaldiçoará a Terra. A pobreza e o crime não se perpetuarão. As mãos magras da necessidade não mais se estenderão por esmolas. Tudo isso se tornará poeira. O mundo será inteligente, virtuoso e livre.


IX

A religião nunca poderá reformar a humanidade porque religião é escravidão.


É muito melhor ser livre, abandonar os fortes e as barricadas do medo, erguer-se com firmeza e encarar o futuro com um sorriso.


É muito melhor, às vezes, dar a si mesmo momentos de desprendimento, para divagar e navegar segundo a maré com a força cega do mundo; pensar e sonhar, esquecer as correntes e limitações da vida, esquecer propósitos e objetivos e viajar pela galeria de imagens em nossa mente; sentir novamente os abraços e beijos do passado, relembrar a manhã de nossas vidas; ver novamente os falecidos, as suas faces; pintar um quadro sensato do futuro, esquecer todos os deuses, suas promessas e ameaças; sentir novamente em nossas veias o fluir da felicidade e ouvir a música marcial, o bater rítmico de um coração destemido.


E então se colocar a serviço de todas as coisas úteis e, através do pensamento e da ação, alcançar o seu ideal; dar asas aos seus sonhos para que eles, como abelhas, possam realizar a arte de encontrar néctar nas coisas mais comuns; buscar, com olhos treinados e decididos, pelos fatos; encontrar as sutis ligações que conectam o distante e o agora.


Aumentar o conhecimento, aliviar o fardo dos fracos, desenvolver o cérebro, defender a justiça, construir um palácio para nossa alma. Isso é a verdadeira religião, isso é a verdadeira adoração.


tradução: André Cancian

fonte: The Secular Web

O Deus Bíblico e Jesus nunca proibiram a escravidão. O Artigo 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma: «Ninguém será mantido ...